OS SENTIDOS DA VIDA
Não há cheiros como os primeiros. O que quero dizer é que não há memórias que venham sem cheiro. Se fechar os olhos e for até ao princípio, à infância, lembro-me sempre de cheiros. O cheiro de casa da minha avó, o cheiro da entrada do ar quente quando se abria a janela do carro ao chegar ao Algarve, o cheiro da oficina onde aprendi a andar de bicicleta, o cheiro do carro do meu pai quando fumar nele ainda era permitido (nem tudo era bom), o cheiro das pipocas que as minhas tias faziam quando ficávamos com elas à noite, o cheiro do algodão doce na Feira Popular, o cheiro da minha mala do ballet, o cheiro do armário dos casacos da minha avó…
E hoje penso… como podemos andar tão cegos para escravizar tudo à ditadura da visão? Estamos em perda de experiências sensoriais … Em queda livre, diria.
Ao ponto de me questionar: de que lembranças será feito o futuro? É que dizem que o olfacto é o sentido da memória.
Estarei a guardar memórias suficientes para o futuro?
Devíamos ser uns pequenos colectores de cheiros para memória futura. Às vezes penso que devíamos andar na vida como porquinhos mealheiros a encherem-se de memórias. Imagino a riqueza da velhice como um enorme porquinho mealheiro do qual todos os dias vamos tirando uma ficha de memórias para gozar melhor o dia.
E até deixando de lado o futuro: para o bem do presente for God´s sake …! É que até para usar a nossa intuição (que tanto aprecio e recomendo), o olfacto sempre foi requisitado. Se algo não nos cheira bem, não é porque não seja apetecível aos olhos, é porque a nossa intuição nos alerta, inconscientemente, para algum perigo. Na nossa versão natural, animalesca, esta era uma das missões do nosso olfacto, fazia parte do seu Job Description, acender a luz amarela do nosso irracional para que possamos ir racionalmente com cuidado.
Se um bosque encantado é um deleite para os sentidos, não é só pela imagem que o representa, é porque a audição, o tacto e o olfacto se juntam à festa nesta sensação de paraíso sensorial.
Na verdade, não há nada de fantástico na visão para se sobrepor aos seus irmãos de experiência, não que seja dispensável (longe de mim pensar tal coisa), mas que pelo menos seja aos demais comparável… é que há um anseio no que nos cria, uma adição no que nos sussurra, um vício no desejo de ter o que vemos, que às vezes não se cura.
Para inspirarmos uma boa música não é raro termos a necessidade de fechar os olhos. Tantas vezes precisamos de calar a visão para podermos cheirar, tocar e ouvir melhor…
Às vezes penso que nos boicotamos a nós mesmos, que aniquilamos o que de mais primário e precioso temos. O mundo entra-nos corpo adentro pela visão. E esta obsessão pelas imagens encurta-nos o pensamento, limita-nos a criatividade, diminui-nos a humanidade.
Haja esperança na curiosidade!